cummings1_Matthias Tunger_Getty Images_researchers Matthias Tunger/Getty Images

Os perigos das extinções programadas

HONOLULU – Está em curso um movimento cínico de promoção de uma tecnologia nova, potente e perturbadora — conhecida como "gene drive" — destinada a ser utilizada no sector da conservação. Não se trata da vulgar modificação genética conhecida como "OGM", mas sim de uma nova tecnologia radical, que cria "reacções mutagénicas em cadeia" capazes de remodelar os sistemas vivos de formas inimagináveis.

A tecnologia “gene drive” representa a próxima fronteira da engenharia genética, da biologia sintética e da modificação genética. A tecnologia substitui as regras padrão da herança genética, garantindo a propagação de uma característica particular — introduzida pelo Homem no ADN de um organismo através de tecnologias avançadas de modificação genética — por todas as gerações posteriores alterando, deste modo, o futuro de espécies inteiras.

Trata-se de um instrumento biológico com um poder sem precedentes. No entanto, em vez de reservar o tempo necessário para considerar as questões éticas, ecológicas e sociais relevantes, muitos estão a promover agressivamente a tecnologia “gene drive” para utilização na área da conservação.

Uma das propostas (página em inglês) visa proteger as aves autóctones da Ilha Kauai no Havai através da utilização da tecnologia “gene drive” para reduzir a população de uma espécie de mosquito transmissor da malária aviária. Um outro plano(página em inglês), promovido por um consórcio no âmbito da conservação que inclui os EUA e agências governamentais australianas, visa erradicar em ilhas específicas os ratos invasores que prejudicam as populações de aves através da introdução de ratos modificados que impedem os primeiros de gerar crias fêmeas. A criação do "rato incapaz de gerar crias fêmeas" constituiria o primeiro passo para o designado Controlo Biológico Genético de Roedores Invasores (Genetic Biocontrol of Invasive Rodents — GBIRd), destinado a causar extinções deliberadas de espécies "praga" como os ratos, a fim de salvar espécies "favorecidas" como as aves ameaçadas de extinção.

O pressuposto subjacente a estas propostas parece ser o de que os seres humanos têm o conhecimento, as capacidades e a prudência necessários para controlar a natureza. A ideia de que se pode — e deve — usar a extinção impulsionada pelo Homem para resolver o problema da extinção causada pelo Homem é inaceitável.

Esta preocupação não é apenas minha. No Congresso Mundial sobre Conservação da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), que está a decorrer no Havai, um grupo de ecologistas e cientistas de renome emitiu uma carta aberta, intitulada “A Call for Conservation with a Conscience” (Um Apelo à Conservação com Consciência), exigindo a suspensão do recurso à tecnologia “gene drive” no sector da conservação. Sou signatária dessa carta, juntamente com o ícone do ambiente, David Suzuki, o físico Fritjof Capra, Tom Goldtooth da Rede Ambiental Indígena e Nell Newman, a pioneira da produção de alimentos biológicos.

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Os debates iniciados no congresso da UICN irão continuar durante a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica no México em Dezembro próximo, um momento em que os líderes mundiais deverão considerar uma moratória global proposta sobre a tecnologia “gene drive”. Estes debates reflectem as reivindicações dos líderes da sociedade civil para que sejam ponderadas com maior profundidade as questões científicas, morais e legais relativas à tecnologia “gene drive”.

A meu ver, não estamos a fazer as perguntas certas. A nossa capacidade tecnológica é amplamente vista através da lente da engenharia, e os engenheiros tendem a concentrar-se numa só pergunta: "Será que funciona?" Porém, à semelhança do que defende Angelika Hilbeck, presidente da Rede Europeia de Cientistas pela Responsabilidade Social e Ambiental (ENSSER), uma pergunta melhor seria: "Que mais faz?"

Relativamente ao projecto GBIRd, por exemplo, pode-se perguntar se o "rato incapaz de gerar crias fêmeas" poderá escapar-se do ecossistema específico em que foi introduzido, tal como acontece com as culturas de OGM e de salmão de viveiro, e o que aconteceria se tal se verificasse. Quanto aos mosquitos no Havai, pode-se perguntar de que modo a redução do seu número afectaria a espécie de morcegos (Lasiurus semotus) em vias de extinção.

A garantia de que estas perguntas sejam tidas em conta não será tarefa fácil. Na qualidade de advogada com experiência em matéria de regulamentação no governo dos EUA, posso afirmar com confiança que o actual quadro regulamentar é absolutamente incapaz de avaliar e regular a tecnologia “gene drive”.

Para agravar a situação, os meios de comunicação social nunca conseguiram instruir o público sobre os riscos suscitados pelas tecnologias genéticas. Conforme explica Lily Kay (página em inglês) (historiadora da Ciência do MIT), poucas pessoas entendem que a engenharia genética foi deliberadamente desenvolvida e promovida como um instrumento de controlo biológico e social. Os responsáveis pela condução desse processo tinham como objectivo cumprir um aparente mandato de "intervenção social baseada na ciência".

Instrumentos poderosos como a modificação genética e, especialmente, a tecnologia “gene drive” estimulam a imaginação de qualquer pessoa com um programa, desde os militares (que poderiam utilizá-los para produzir armas biológicas capazes de mudar o jogo) até aos promotores da saúde bem-intencionados (que poderiam utilizá-los para ajudar a erradicar certas doenças mortais). Apelam seguramente à narrativa do herói que muitos dos meus colegas ambientalistas privilegiam.

Mas o facto é que não criámos a infra-estrutura intelectual para enfrentar os desafios fundamentais que esta tecnologia “gene drive” — já para não mencionar outras tecnologias poderosas — suscita. E agora devemos suspender as nossas faculdades críticas e confiar na promessa das elites da tecnologia de utilizar a tecnologia “gene drive” de forma responsável ao serviço de objectivos ambientais aparentemente positivos. Supostamente, não é necessário um debate público aberto. Mas por que razão deveríamos acreditar cegamente que está tudo sob controlo?

Na minha opinião, concentrar a utilização da tecnologia “gene drive” no sector da conservação é um estratagema para obter aceitação pública e abrangimento regulamentar. Qual a necessidade de sujeitar algo ao escrutínio público e a possíveis restrições quando podemos fazê-lo entrar pela porta dos fundos, fingindo que trará algo de bom? Os riscos são demasiado óbvios para que os promotores da tecnologia “gene drive” se arrisquem a falar deles.

A minha experiência de mais de 20 anos de investigações e relatórios sobre tecnologias transgénicas levou-me a crer que já tinha presenciado as falsas promessas e propaganda mais graves que estas geram. Porém, a tecnologia “gene drive” é diferente de tudo o que testemunhámos e resulta no teste final do nosso controlo próprio. Poderemos realmente confiar na ciência para nos orientarmos, ou devemos confiar imprudentemente o nosso destino às soluções tecnológicas infalíveis como via a seguir?

Felizmente, ainda temos escolha. O facto de a tecnologia “gene drive” ser susceptível de alterar a relação básica entre a humanidade e o mundo natural constitui simultaneamente um desafio e uma oportunidade. Podemos fazer agora o que deveríamos ter feito há muito tempo no que diz respeito às tecnologias nucleares e transgénicas: começar a prestar mais atenção aos perigos da ingenuidade humana — e a ter mais respeito pelo génio da natureza.

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