mueller46_DARREN HULLAFP via Getty Images_canada wildfires DARREN HULLAFP via Getty Images

O canto da sereia do autoritarismo climático

BUDAPESTE – Este verão – com as suas temperaturas recordes, inundações mortais e incêndios florestais violentos, que só no Canadá destruíram o equivalente a todas as árvores na Alemanha – pode ser entendido um aviso final: sem uma urgente e drástica ação, a atual emergência climática irá tornar-se um inevitável desastre climático. Alguns poderão ficar tentados a pensar que chegamos a um ponto em que a nossa única hipótese de montar uma resposta suficientemente rápida e potente à ameaça é endossar a decisiva autoridade estatal, até mesmo o absoluto autoritarismo. Mas a noção de que os autoritários com mentalidade ecológica irão superar os líderes democráticos em matéria de clima é uma perigosa fantasia.

As preocupações sobre a capacidade das democracias para agirem de forma rápida e eficiente não são novidade. Um governo que permite a participação de todos (em teoria, embora nem sempre na prática) contribui para um sistema imperfeito e lento. Jogadores influentes muitas vezes podem vetar ações que a maioria apoia. Por outro lado, a visão de que as massas irracionais exercem demasiado poder – há muito expressada em voz baixa – tornou-se inteiramente aceitável socialmente na era de Donald Trump. Por exemplo, eleitores tendem a punir políticos por tomarem medidas para prevenir catástrofes e a recompensá-los por parecerem heroicos durante uma catástrofe, embora a ajuda em caso de catástrofe seja muito mais cara do que a prevenção.

Além de preconceitos bem conhecidos – muitos deles tão antigos como os escritos de Platão – pode-se argumentar que alguns dos benefícios da democracia não contam muito na emergência climática. As democracias orgulham-se do fato de todas as decisões poderem ser revistas – de as políticas poderem ser atualizadas e melhoradas e de os perdedores numa eleição poderem tornar-se vencedores nas eleições seguintes (e, assim, terem motivos para continuar a participar do jogo democrático). Mas as decisões relacionadas com o clima têm consequências importantes e irreversíveis, por isso, mesmo escolhas erradas – como fazer muito pouco – que sejam revistas mais tarde, terão causado ​ graves danos.

Outras críticas contemporâneas são mais contundentes. As democracias baseiam-se no compromisso, mas as negociações revelam-se muitas vezes incoerentes, especialmente em sistemas multipartidários, porque muitos e diferentes participantes políticos querem conseguir o que desejam. A atual coligação governamental da Alemanha parece ser um exemplo disso. Corrigir essa incoerência leva tempo, o que as democracias poderiam levar em circunstâncias normais, mas certamente não levam quando o planeta está ficando cada vez mais quente e mais apocalíptico praticamente a cada dia.

Outra preocupação fundamental decorre do domínio de fato dos interesses empresariais nas democracias capitalistas. Uma vez que a ação climática irá inevitavelmente prejudicar pelo menos alguns interesses dos capitalistas, esses interesses parecem provavelmente impedir que as medidas necessárias sejam tomadas a tempo – ou talvez nunca.

Agora, com a rápida escalada da crise climática, aumentam os descarados apelos a uma mais  autoritária tomada de decisões. Alguns defendem uma abordagem mais tecnocrática e consideram a China um exemplo brilhante. (A ironia de que a China é o maior emissor mundial de gases com efeito estufa aparentemente lhes passa despercebida.) Outros – nomeadamente o pensador sueco Andreas Malm – imaginam uma nova forma de leninismo-comunismo de guerra .

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Estas propostas levantam questões óbvias, que os seus proponentes nunca abordam. Se, em prol da ação climática, o poder estiver concentrado nas mãos de um Estado que não responde perante o povo, o que impediria os abusos desse poder? Porque é que, na ausência de quaisquer mecanismos de responsabilização, um regime autoritário iria realmente enfrentar as alterações climáticas? Será que se espera realmente que os interesses poderosos que atualmente impedem a ação climática não sejam tão poderosos, se não mais, sob uma autocracia climática?

Os regimes autoritários são notoriamente corruptos. Assim, a noção de que esse sistema estaria livre de “interesses especiais” e seria gerido por tecnocratas neutros e racionais, é implausível. Na verdade, longe de reforçar a ação climática, uma mudança para um estilo de tomada de decisão autoritário provavelmente pioraria as coisas.

O autoritarismo climático também pode sair pela culatra de formas menos óbvias. Num sistema político com alguma liberdade, a oposição é inevitável. Se as autoridades considerarem novas restrições necessárias para reprimir as críticas ou a resistência, poderão acabar por corroer outras liberdades básicas, incluindo a liberdade de produzir e trocar ideias potencialmente transformadoras.

Imaginemos o seguinte: um grupo de cientistas climáticos considera as políticas do ditador climático insuficientes e tenta mobilizar outros para exigirem ações mais fortes. Numa tentativa de restaurar a “ordem”, o ditador impõe medidas que restringem a liberdade acadêmica e a liberdade de associação. Agora, não só os especialistas são menos capazes de influenciar a resposta climática do estado, como poderão não ter oportunidades para desenvolver ou partilhar ideias e inovações que possam melhorar a nossa capacidade coletiva de enfrentar o desafio climático.

É verdade que nada disto significa necessariamente que os sistemas democráticos estejam particularmente bem equipados para promover a ação climática. Em vez disso, poder-se-ia concluir que não existem quaisquer bons instrumentos políticos. Mas isto negligencia um ponto fundamental: os obstáculos a uma ação climática eficaz nas democracias atuais não são inerentes. Pelo contrário, são inconsistentes com os ideais democráticos e, numa democracia que funciona bem, deveriam ser eliminados.

A desproporcional influência da indústria dos combustíveis fósseis no processo político, por exemplo, não é apenas prejudicial ao ambiente, mas também é fundamentalmente antidemocrática. Mesmo sem a urgente necessidade de enfrentar a emergência climática, os cidadãos teriam boas razões para exigir mudanças. A conclusão é clara: se não levarmos a sério a emergência climática, não salvaremos a democracia, e se não levarmos a sério os ideais democráticos, não salvaremos o clima.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil

https://prosyn.org/HiMYJUcpt