mpaxton1_jonathanfilskov-photographyGetty Images_mangrove jonathanfilskov-photography/Getty Images

A natureza precisa da sua própria identificação

NOVA IORQUE – Durante os meus 35 anos de carreira na conservação do ambiente, apercebi-me de que a atual crise planetária é provocada não só pela destruição e negligência, mas também por algo mais profundo: a cegueira dos nossos sistemas económicos em relação ao valor da natureza.

Enquanto os governos perseguem o crescimento do PIB e as empresas procuram maximizar os lucros, não têm em conta os vastos ecossistemas que sustentam as nossas economias, sociedades e bem-estar pessoal. Gerimos o que medimos e, como os serviços ecossistémicos não aparecem nos balanços, são efetivamente invisíveis, mesmo quando as implicações – exploração dos recursos naturais, destruição do habitat e poluição do ar, da terra, da água e dos oceanos – nos olham de frente.

As consequências de continuarmos no nosso caminho atual estão bem documentadas. O Banco Mundial adverte que o colapso de apenas alguns serviços ecossistémicos cruciais, como a polinização selvagem e a pesca marinha, poderia reduzir o PIB global em 2,7 biliões de dólares por ano até 2030.

Como podemos tornar a natureza mais visível e importante no nosso processo de tomada de decisões? O conjunto de recomendações e diretrizes que fazem parte da Taskforce on Nature-related Financial Disclosures representam um primeiro passo importante. Ao fornecer às instituições financeiras e às empresas as ferramentas necessárias para avaliar a sua dependência e o seu impacto nos ecossistemas naturais, a iniciativa incentiva-as e permite-lhes transferir os fluxos financeiros para investimentos positivos para a natureza.

Quantificar estas relações não é tarefa fácil. Mas as identificações digitais da natureza oferecem uma solução promissora. Tal como as identificações pessoais permitem que os cidadãos exerçam os seus direitos, recebam benefícios do governo, tenham acesso a serviços bancários e empreendam uma ação nos tribunais, uma identificação digital da natureza poderia ajudar a estabelecer métricas ambientais essenciais para contabilizar os ecossistemas que suportam o desenvolvimento humano.

Uma pessoa sem documento de identificação arrisca-se a ser invisível na sociedade moderna. O mesmo se aplica à natureza. A atribuição de identificações seguras aos ecossistemas naturais poderia protegê-los da exploração descontrolada. Por exemplo, uma bacia hidrográfica florestal poderia ter uma identificação que armazenasse informações sobre as suas caraterísticas geográficas, biodiversidade e serviços ecossistémicos, juntamente com os benefícios mensuráveis que proporciona às comunidades locais e mesmo às populações mais distantes. Ao quantificar estes benefícios, poderíamos tornar mais difícil para as empresas ou indivíduos desrespeitar ou prejudicar a natureza. O valor da natureza deixaria de ser invisível e passaria a ser identificado, legalmente reconhecido e muito mais difícil de explorar.

Introductory Offer: Save 30% on PS Digital
PS_Digital_1333x1000_Intro-Offer1

Introductory Offer: Save 30% on PS Digital

Access every new PS commentary, our entire On Point suite of subscriber-exclusive content – including Longer Reads, Insider Interviews, Big Picture/Big Question, and Say More – and the full PS archive.

Subscribe Now

Com a digitalização a revolucionar os sistemas de identificação, a nossa capacidade de identificar, monitorizar e medir atingiu níveis que antes pareciam inimagináveis. O Aadhaar – o sistema de identificação digital biométrico e baseado em dados da Índia – é um excelente exemplo. Ao permitir a verificação instantânea da identidade, o Aadhaar proporcionou a mais de mil milhões de pessoas o acesso a uma série de serviços públicos e programas sociais. Do mesmo modo, as infraestruturas públicas digitais para o desenvolvimento sustentável já atribuem identificadores únicos a estruturas físicas como estradas e pontes, destacando o seu valor económico.

Uma abordagem semelhante poderia ser aplicada à natureza. Com o rápido desenvolvimento das tecnologias móveis, uma identificação digital da natureza pode integrar a marcação digital, a deteção remota e os dados dos sensores para monitorizar em tempo real os ecossistemas naturais. A IA poderia melhorar ainda mais estes sistemas, tornando os dados ambientais mais acessíveis e acionáveis. Imaginemos uma parcela de dados geomarcados, revestida com caraterísticas ecológicas fundamentais e indicadores de saúde ambiental, oferecendo uma imagem holística e viva de um ecossistema específico. Uma das primeiras iterações deste conceito é a capacidade de monitorizar as cadeias de abastecimento para garantir que a sua chávena de café não está associada à desflorestação.

Ao integrar dados administrativos, ambientais e geográficos, as identificações digitais da natureza podem abrir caminho para a expansão de esquemas de pagamento baseados em resultados, proporcionando uma compensação justa àqueles que protegem as florestas tropicais, os mangais e outros ecossistemas vitais que absorvem carbono. Podem também melhorar a rastreabilidade das matérias-primas nas cadeias de abastecimento agrícola e capacitar os detentores de direitos fundiários, melhorando o acesso a créditos de biodiversidade, obrigações verdes e empréstimos ligados à gestão sustentável. Além disso, um sistema deste tipo poderia reforçar as proteções legais para as comunidades indígenas e locais ao incorporar registos claros e específicos do local.

Mas o desenvolvimento de uma identificação digital da natureza tem de ser um esforço de toda a sociedade, sustentado pelos princípios da inclusão e da colaboração. A sua conceção deve refletir as preocupações de todas as partes interessadas, para que sirva como um bem público que impulsione ações positivas para a natureza em grande escala. Acima de tudo, tem de defender os direitos, o bem-estar e os sistemas de valores dos povos indígenas e das comunidades locais, assegurando que mantêm o controlo sobre os dados relacionados com as suas terras, recursos e modo de vida.

Para ter sucesso, um sistema digital de identificação da natureza tem de ser integrado na infraestrutura digital existente, permitindo que os países o adaptem e aperfeiçoem de forma a adequar-se às respetivas realidades socioeconómicas e ambientais únicas. Seriam necessárias leis e políticas sólidas que fomentassem a partilha de dados, a normalização e a certificação para promover a interoperabilidade e proteger contra o uso indevido.

Em grande escala, uma identificação digital da natureza poderia tornar-se uma ferramenta transformadora para contabilizar o valor dos recursos naturais do nosso planeta e as contribuições para a humanidade. Ao reconhecer e quantificar as formas como a natureza permite que as nossas sociedades e economias sobrevivam e prosperem, podemos dar início a uma nova era de responsabilização ambiental.

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com o apoio da Fundação Rockefeller e outros parceiros, tem vindo a desenvolver o conceito de identificação digital da natureza como uma infraestrutura pública digital através de investigação e reuniões com povos indígenas, governos, ONG e o setor privado. As opiniões aqui expressas são as da autora e não refletem necessariamente as dos financiadores ou parceiros.

https://prosyn.org/h1OCkGspt