hollingworth2_Mario TamaGetty Images_USpovertyhomeless Mario Tama/Getty Images

O momento Sputnik da pobreza global

WASHINGTON DC – Desde que a actual administração se instalou na Casa Branca dos EUA, as discussões sobre o desenvolvimento internacional transformam-se frequentemente num lamento comunal. Mesmo para os mais optimistas, isto prefigura uma espécie de elegia.

O lamento inclui muitos versos. Começa com uma abordagem “América Primeiro” que originou uma importante redução na concessão de ajuda externa. Embora o financiamento para ajuda de emergência não tenha sido interrompido, especialmente no caso de conflitos geopolíticos e para combater o extremismo islâmico, o apoio à ajuda historicamente usado em programas de longo prazo – saneamento de água, saúde pública, inclusão financeira e agricultura – diminuiu. E os apoios que ainda existem estão a ser implementados lentamente.

Entretanto, os doadores dos Estados Unidos estão a dedicar mais recursos a causas internas como a imigração e a violência armada, e cerca de 10 mil milhões de dólares serão gastos só em publicidade na campanha para as presidenciais deste ano nos EUA. E agora a pandemia da COVID-19 introduziu novas e enormes tensões financeiras. A economia nacional e as economias familiares estão sob tensão, as fronteiras estão fechadas e os raciocínios nacionalistas reforçaram-se.

Isso traz-nos ao refrão. Logo no momento em que a tecnologia sofisticada, os dados e ferramentas de financiamento híbrido nos permitem enfrentar os problemas mas preocupantes do mundo – como a pobreza global, a falta de oportunidades para os jovens e as alterações climáticas – os EUA deixaram de cantar a sua voz.

Desde a queda do Muro de Berlim que 1,9 mil milhões de pessoas foram retiradas à pobreza extrema, onde permanecem 650 milhões. Com ferramentas como a tecnologia digital, o dinheiro móvel e a análise de dados, o fim da pobreza está ao nosso alcance – agora um pouco mais longe, devido às consequências desta pandemia.

O papel da China no desenvolvimento originou um ponto de viragem no desenvolvimento internacional. Desde o lançamento da Iniciativa da NRS - Nova Rota da Seda (NdT: no original, Belt and Road Initiative) em 2013, a China tentou maximizar a sua influência geopolítica através de investimento em infra-estruturas num valor próximo de 1 bilião de dólares em mais de 100 países. Quatro anos mais tarde, a China anunciou o lançamento da Rota da Seda Digital, num esforço para criar infra-estruturas informáticas nos países da NRS.

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Os progressos da China na análise de dados, na conectividade em banda larga, no comércio electrónico e na integração financeira fizeram muitos analistas desenterrar analogias da Guerra Fria para fazer soar o alarme de que a China está a arrasar a América. O que é necessário é uma estratégia holística e agressiva, como as implementadas pelos EUA quando se sentavam à cabeça da mesa global.

Quando a União Soviética demonstrou a superioridade da sua tecnologia de foguetes de longo alcance com o seu lançamento do satélite Sputnik 1 em 1957, os americanos temeram subitamente a militarização do espaço pelos soviéticos. Mas, em vez de somente expandir os gastos na defesa para recuperar o poderio militar dos EUA, o presidente Dwight Eisenhower reconheceu a importância estratégica do poder diplomático e canalizou o investimento público para a ciência, a tecnologia e o ensino. A América não estava apenas numa corrida para as estrelas e os planetas; estava numa corrida pelos corações e pelas mentes, tal como acontece hoje.

Em muitas ocasiões desde essa altura, já vimos o que acontece quando os EUA apoiam políticas para ultrapassar ameaças globais. Em 2003, a administração de George W. Bush enfrentou o VIH/SIDA com o PEPFAR, o maior programa de saúde global de sempre concentrado numa única doença. Onze anos mais tarde, a administração de Barack Obama respondeu ao surto de Ébola na África Ocidental com uma abordagem multi-facetada que ajudou a acabar com a crise em 18 meses.

A abordagem da actual administração ao desenvolvimento externo é a Corporação Internacional para o Financiamento do Desenvolvimento dos EUA. Mas embora a CIFD, que proporciona empréstimos e garantias a investidores dispostos a realizar actividades em países em desenvolvimento, possa cumprir a sua missão limitada, são necessários princípios orientadores fundamentados para atenuar os riscos de modas e de caprichos políticos passageiros. Mesmo então, a CIFD não conseguirá erradicar a pobreza mundial sozinha. Nenhuma resposta única será suficiente – nem a filantropia, nem os dados, nem a digitalização, nem o investimento de impacto. O que precisamos é de um plano ousado que conjugue estes recursos inestimáveis.

A Fundação Grameen, que ajudou mais de 14 milhões de pessoas carenciadas desde 2016, testemunhou em primeira mão o impacto que recursos novos e reconfigurados têm sobre os desfavorecidos. Dados exactos e actualizados permitiram à Grameen compreender as necessidades que os mais pobres têm de ferramentas financeiras e agrícolas, nomeadamente da tecnologia digital, para ajudá-los a sair da miséria.

A digitalização transformará vidas. A Internet das Coisas permitirá o intercâmbio de dados com cerca de 38,5 mil milhões de dispositivos globalmente em 2020. É graças a ela que a Komal, uma Agência Comunitária Grameen de base móvel, consegue distribuir serviços financeiros à porta dos seus vizinhos desfavorecidos e rurais. E o financiamento criativo é o motivo pelo qual o Proyecto Mirador, um cliente da filial TaroWorks da Grameen, utiliza tecnologias limpas de cozinha doméstica para reduzir a poluição causada por três mil milhões de pessoas em todo o mundo que cozinham sobre fogueiras. Os seus esforços para a redução das emissões de gases com efeito de estufa são parcialmente financiados através da venda de compensações de carbono da Gold Standard.

Presentemente, o mundo está preparado para escapar ao aperto da pobreza. Se os EUA não tomarem o seu lugar à mesa, serão relegados para a mesa das crianças, a sua voz não será ouvida e as suas birras serão ignoradas. A China e outros países com valores distantes dos valores das democracias ocidentais dominarão a conversa dos adultos.

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