haldar33_Sean GallupGetty Images for Burda Media_kahneman Sean Gallup/Getty Images for Burda Media

O psicólogo que convenceu os economistas de que errar é humano

CAMBRIDGE –  O recente falecimento do psicólogo e Prémio Nobel Daniel Kahneman é um momento adequado de reflexão sobre sua inestimável contribuição para o campo da economia comportamental. Embora a famosa afirmação de Alexander Pope de que “errar é humano” remonte a 1711, foi o trabalho pioneiro de Kahneman e do seu falecido coautor e amigo Amos Tversky, na década de 1970 e no início da década de 1980, que finalmente convenceu economistas a reconhecerem que as pessoas muitas vezes cometem erros.

Quando recebi uma bolsa de estudos no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento (CASBS) da Universidade de Stanford, há quatro anos, foi esse fundamental avanço que me motivou a escolher o cargo – ou “estudo” (para usar a terminologia do CASBS) – que Kahneman ocupava. durante seu ano no Centro em 1977-78. Parecia o cenário ideal para  explorar as três principais contribuições econômicas de Kahneman, que desafiaram o apócrifo “ator racional” da teoria econômica ao introduzir um elemento de realismo psicológico na disciplina.

A primeira grande contribuição de Kahneman foi o estudo inovador dele e de Tversky de 1974 sobre julgamento e incerteza, que introduziu a ideia de que “preconceitos” e “questionamentos”, ou regras práticas, influenciam nossa tomada de decisão. Em vez de analisar minuciosamente cada decisão, descobriram eles, as pessoas tendem a confiar em atalhos mentais. Por exemplo, podemos confiar em estereótipos (conhecidos como a “heurística da representatividade”), sermos excessivamente influenciados por experiências recentes (a “heurística da disponibilidade”) ou usarmos a primeira informação que recebemos como ponto de referência (o “efeito âncora”).

Em segundo lugar, o trabalho de Kahneman e Tversky sobre a “teoria da perspectiva”, que publicaram em 1979, criticou a teoria da utilidade esperada como modelo de tomada de decisão sob risco. Baseando-se no “efeito de certeza”, Kahneman e Tversky argumentaram que os humanos são psicologicamente mais afetados pelas perdas do que pelos ganhos. A perda sentida por perder uma nota de US$ 20, por exemplo, superaria o ganho sentido por encontrar uma nota de US$ 20 na calçada, que leva à “aversão à perda”.

Essa percepção também está no cerne do “efeito de enquadramento”. A teoria, desenvolvida enquanto Kahneman era bolsista no CASBS e Tversky era professor visitante em Stanford, postula que a forma como a informação é apresentada – seja como perda ou ganho – influencia significativamente o processo de tomada de decisão, mesmo quando o que é enquadrado como uma perda ou ganho tem o mesmo valor.

Por último, há a popular obra-prima de Kahneman, o best-seller Thinking, Fast and Slow  (Pensando Rápido e Devagar). Publicado em 2011 e oferecendo insights para uma vida inteira, o livro apresentou ao público em geral dois modos estilizados de tomada de decisão humana: o modo “rápido”, instintivo e emocional que Kahneman chamou de Sistema 1, e o modo “mais lento”, deliberativo, ou modo lógico, que ele chamou de Sistema 2. Os humanos, ele mostrou, são propensos a abandonar a lógica em favor de impulsos emocionais.

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Kahneman recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2002, apesar de, como comentou brincando, nunca ter feito um único curso de economia. No entanto, seus estudos lançaram as bases para um campo inteiramente novo de pesquisa econômica – e tudo começou no Estudo 6.

Em particular, o trabalho de Kahneman teve um impacto profundo no economista Richard Thaler, da Universidade de Chicago, que acabou por tornar-se também um ganhador do Prêmio Nobel. Como professor assistente, Thaler conseguiu “obter” uma nomeação como visitante no National Bureau of Economic Research, cujos escritórios estavam localizados na colina do CASBS, permitindo-lhe estabelecer contacto com Kahneman e Tversky.

Em 1998, Thaler foi coautor de um artigo seminal com Cass Sunstein e Christine Jolls, introduzindo o conceito de “limites” na razão, força de vontade e interesse próprio que destaca as limitações humanas que os modelos de atores racionais tinham ignorado. Quando recebeu o Prêmio Nobel em 2017, Thaler havia sistematicamente documentado “anomalias” no comportamento humano que a economia convencional se esforçava para explicar e conduzido pesquisas altamente influentes (com Sunstein) sobre “arquiteturas de escolha”, popularizando a ideia de que mudanças sutis no design ( “empurrões”) podem influenciar o comportamento humano.

Mas enquanto eu contemplava as deslumbrantes paisagens de Palo Alto e da Península de São Francisco a partir da janela do escritório do CASBS, o berço da economia comportamental, não pude deixar de me perguntar se Kahneman, apesar de sua natureza notoriamente gentil, talvez tivesse sido muito crítico em relação a tomada de decisão humana. Serão todos os desvios da lógica econômica “pura” necessariamente “irracionais”? Será a nossa incapacidade de nos alinharmos com o modelo idealizado de análise econômica, juntamente com a nossa inevitável irracionalidade – embora previsível –, realmente uma fraqueza inerente? E será a nossa tendência para confiar nas emoções em vez da razão uma falha fatal e, em caso afirmativo, poderá a nossa suscetibilidade ao instinto levar, em última análise, à nossa queda?

Gostaria de poder fazer essas perguntas a Kahneman. Durante minha estada lá em 2020-21, Kahneman, carinhosamente conhecido como “Danny” por todos, não era apenas o que o CASBS chamava de “fantasma” do “estudo” – um ex ocupante que teve uma grande influência em meu trabalho – mas também, felizmente, uma lenda viva e vibrante que me convidou com entusiasmo para discutir pessoalmente essas mesmas questões. Olhando para trás, lamento a minha “falácia de planejamento” ao não aceitar sua oferta de aprofundar a nossa conversa mais cedo – um sentimento partilhado pelos meus módulos Sistema 1 e Sistema 2. Se “errar é humano”, Danny me ensinou uma comovente lição final sobre erro humano.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil.

Antara Haldar, Professora Associada de Estudos Jurídicos Empíricos na Universidade de Cambridge, é membro visitante do corpo docente da Universidade de Harvard e principal pesquisadora de uma bolsa do Conselho Europeu de Pesquisa sobre direito e cognição.

https://prosyn.org/eZpmhXRpt